segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Escracho dos Direitos Humanos

Por Iracilde Rodrigues*

Qual é o significado de uma indicação ao Prêmio Nacional de Direitos Humanos? Para alguns, pode representar um compromisso individual ou coletivo com a proteção das liberdades humanas; para outros, uma contribuição para a efetividade da cidadania. Há quem pense em vincular tal agremiação à um feito significativo para o fortalecimento da democracia no país, mas, certamente, ninguém ousaria fazer qualquer associação à prática violadora de direitos humanos.

Surpreendentemente, o governo brasileiro pode eleger o Levante Popular da Juventude como um dos ganhadores da 18ª edição do Prêmio, por escrachar acusados de práticas criminosas durante o regime militar.  O Levante é uma organização social que se propõe, dentre outros objetivos, a contribuir, como o movimento mesmo afirma, para a “consolidação da plataforma dos direitos humanos”.

Em maio desse ano, centenas de jovens se reuniram em várias cidades brasileiras para execrar publicamente seres humanos. Esse foi o objetivo da manifestação protagonizada pelo Levante Popular, que recebeu o nome de ‘Escracho’. Em nome da presentificação do passado e da verdade de seus acontecimentos, os manifestantes se dirigiram às residências dos militares anistiados com alto-falantes e faixas alertando à vizinhança que ali morava um torturador. Por um instante, a venda da cega justiça os fez esquecer que estavam rechaçando também os direitos humanos que eles dizem defender.

Em favor de uma punição simbólica exemplar, manifestantes do Levante e de outros movimentos sociais, bem como o conjunto dos grandes defensores de direitos humanos do país, decidiram legitimar a violação de um princípio constitucional: o da dignidade da pessoa humana, como se esse princípio não abrangesse a totalidade dos seres humanos, ou como se a dignidade fosse um atributo exclusivo de alguns sujeitos.

Ninguém tem o direito de expor uma pessoa de forma humilhante, seja ela quem for, ainda que tenha cometido um crime de lesa humanidade. Nenhuma pessoa pode desferir ataques contra a honra de seu semelhante e de interferir na sua vida privada, na de sua família, no seu lar, conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Muito me entristece saber que figuras como o jurista Fábio Konder Comparato e o dirigente nacional do MST João Pedro Stédile, grandes defensores das garantias fundamentais, se curvam diante do Escracho. Comparato chegou a afirmar publicamente que esse é um “ato que vai transformar esse país”. Fico me questionando sobre a transformação que queremos, eu e todos aqueles que lutam diariamente pelo fim da supressão de direitos humanos no Brasil.

Eu acredito na justiça que responsabiliza e restaura, e não na que pune, como retribuição à um mal causado. O Escracho é um movimento que instiga o ódio, a vingança social, e que alimenta o ciclo da violência. Dificilmente, conseguiremos reparar dores e traumas humanos com ações arbitrárias e vitimadoras.

* Estudante de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e estagiária do Centro de Referência em Direitos Humanos.

sábado, 31 de março de 2012

Uma visão da audiência pública sobre o sistema penitenciário do RN

Continuo tentando digerir tudo o que ouvi ontem (30), em audiência na casa legislativa do nosso Estado. Em pauta, novamente, o Sistema Penitenciário, como se o eco dos discursos proferidos na tribuna daquela assembléia fosse capaz de reordenar a lógica do tratamento que historicamente vem sendo dado aos condenados. Essas vozes, que deveriam reclamar justiça e humanidade nos ambientes de privação de liberdade, ontem, pelo contrário, legitimaram o uso da violência nesses espaços onde ela já é imperatriz.

Não coincidentemente importaram um coronel das Minas Gerais para defender com contundência a natureza policial e militar do serviço penitenciário e reforçar sobremaneira a criação da polícia penal.  Vale ressaltar que o Manual para Servidores Penitenciários, importante instrumento fundamentado nas normas internacionais de direitos humanos, ressalta claramente que a administração penitenciária possui natureza civil e que as funções dos agentes penitenciários se restringem ao exercício da vigilância e cumprimento das normas e regulamentos das unidades prisionais. Ao agente penitenciário são atribuídos os papéis de custódia, educação e regeneração do preso e não o de atuação como força militar.

Como se não bastasse isso, a Penitenciária Estadual de Alcaçuz foi alçada à condição de espaço de regalias por uma representante do Ministério Público.

Em tom de escárnio, o representante do governo do Estado, atual coordenador da administração penitenciária, exaltou sua veia militar, chegando a dizer que se lhe tirassem o sangue, sangue de PM sairia. Nos 15 minutos que lhe foram concedidos, o coronel fez tudo, menos falar de gestão prisional.

Infelizmente, essas foram as vozes que ecoaram mais forte dentro de mim. E, discordando do companheiro Cleber, representante do MOVPAZ, quando afirmava que os discursos proferidos na audiência de ontem eram os mesmos das últimas audiências realizadas, eu afirmo, caro amigo, que eles pioraram bastante. Os representantes do Estado, que só se prestavam a defender-se das acusações pelas práticas violadoras de direitos no âmbito do sistema penitenciário, dessa vez legitimaram suas ações em alto e bom som para quem quisesse ouvir, sem nada temer.

Se não há mais chão debaixo do fundo do poço, o que esperar de uma nova audiência pública daqui a dois, três anos? Temo que manifestações públicas ainda mais irracionais.

É imperativo que a voz dos que consideram a dignidade humana um bem inviolável, possa bradar nos territórios onde a desumanidade já se instalou, caso contrário reviveremos um tempo de sangue militar correndo na veia da nossa nação.